terça-feira, 14 de março de 2017

O carma, a caridade e o bem maior


Isabel caminhava em direção a Pai José. Ela estava prestes a comunicar-lhe sua decisão: pediria afastamento do terreiro.
- Boa noite zifia! Como vai suncê?
- Boa noite Pai José! O Senhor já sabe o que vim fazer aqui hoje, não sabe?
- Filha se este nêgo véio tivesse este poder ele não seria Pai José, mas sim o próprio Deus, pois só Ele sabe de todas as coisas.
- Como assim vovô?
- Nós não somos advinhos zifia! Se suncê veio aqui é por que tem algo a dizer e este nêgo tá aqui, de coração aberto, só para te escutar!
- Então acho que tenho que dizer de uma vez só, não é vovô?
- Da forma que for melhor pra suncê.
- É que eu vou pedir desligamento do terreiro. O que o senhor acha disto?
- Zifia toda decisão indica um caminho que é sinalizado por pensamentos e sentimentos. Onde este caminho vai dar, abaixo de Zambi, só teu pensar e sentir que poderão lhe dizer.
- Como assim Pai José?
- Bom senso minha filha! Toda decisão, de todo ser humano, deve ser pautada pelo bom senso.
- O senhor está dizendo que esta minha decisão não está baseada no bom senso?
- De forma alguma! Nêgo véio não faz julgamento de valor! Só estou explicando para a filha que a ilusão obscurece o bom senso.
- Ilusão? Como assim?
- Só um instantinho minha filha.
A entidade pediu que seu cambone trouxesse um copo de água em temperatura ambiente e outro de água gelada. Somente quando ele voltou foi que a entidade disse a Isabel:
- Zifia estique sua mão direita e diga se este líquido está quente ou frio.
O preto-velho derramou um pouco de água em temperatura ambiente na mão dela que respondeu-lhe:
- Nem quente, nem fria: está em temperatura ambiente.
- Continue com a mão estendida.
Pai José derramou a água gelada, que seu cambone trouxera, na destra de sua consulente que falou-lhe:
- Este líquido está gelado!
- Permaneça com sua mão esticada!
O preto-velho tornou a derramar água em temperatura ambiente na mão de Isabel, que disse:
- Esta água parece quente.
- Suncê viu de onde nêgo tirou esta água que suncê falou que parece quente?
- Vi sim senhor. Foi do copo com água em temperatura ambiente!
- E como a mesma água que antes suncê respondeu que estava em temperatura ambiente, de repente pareceu quente?
- É que a água que o senhor derramou na minha mão antes desta estava muito gelada.
- Muito bem zifia! Suncê é muito sabida! Percebe o que a ilusão dos sentidos pode fazer com seu julgamento? Seu pensamento? Seu sentimento?
- Não totalmente!
- Não se preocupe minha filha! Continue a prosear com este véio que Deus, em sua infinita misericórdia, há de fazê-la entender certas coisas.
- Vovô eu não consigo mais ver sentido em ficar aqui: o senhor sabe que minha filha, que assim como eu era médium desta casa, acabou de desencarnar fulminantemente por conta de uma enfermidade que ninguém pôde diagnosticar a tempo de salvá-la!
- Salvá-la de que, zifia?
- Do que? Da morte!
- Mas não existe morte zifia: só existe vida, ainda que em outro plano da existência!
- Nenhuma entidade contou nada para mim ou para ela, que só foi saber da doença quando passou mal e os médicos a diagnosticaram como enferma, após realização de vários exames.
- Suncê se sentiu traída por nós, minha filha?
- Vocês sabiam da doença?
- Era visível a nóis, pelo perispírito!
- Então devo dizer que me senti traída, pois vocês não me alertaram.
- Nóis passamos um tratamento para a zifia!
- Sim e ela o seguiu, mas foi um tratamento que o senhor sabia que não resolveria o problema dela, que não a ajudaria. Vocês não nos alertaram!
- Zifia, e de que adiantaria nosso alerta se a doença começara a se desenvolver em sua filha há dez meses? Se a situação da saúde de sua filha era irreversível há cinco meses e se suncês entraram para a corrente mediúnica do terreiro há três meses?
- Mas vocês poderiam ter nos alertado, nos preparado!
- Preparar? Desculpe a franqueza zifia, mas a preparação para a verdade imutável que é o desencarne deve acontecer todo dia e a todo o momento, e isto não é pensar negativo, mas sim com humildade e sabedoria, pois só Deus sabe a hora de cada um.
- Eu vou sair porque acho que vocês poderiam ter nos preparado!
- Filha há muito tempo, quando suncê tinha dezesseis anos, seu pai faleceu da mesma moléstia que sua filha apresentou!
- É verdade!
- Seu pai lutou contra a moléstia por quase treze meses.
- Isto também é verdade!
- E foi justamente durante estes treze meses que suncê, somatizando todo o sofrimento pela condição de saúde de seu paizinho, desenvolveu uma úlcera gástrica que tanto lhe incomoda até os dias de hoje.
- É verdade.
- Agora minha filha, abrindo seu coração com honestidade, responda:
- Em que lhe ajudou saber sobre a doença de seu pai?
- Acho que começo a entender o senhor.
- Zifia Isabel este nêgo véio fala a suncê que nóis, que suncês chamam de entidades, não somos advinhos!
- Somos falangeiros que militam pela Lei maior e pela Justiça divina! Para Deus a caridade que se faz a um de Seus filhos é uma caridade feita para toda a humanidade!
- Entendo.
- Deus tem amor enorme por cada uma de suas criaturas, só que para Deus o bem maior está acima das individualidades e foi por isto que ao mundo Ele enviou Jesus.
Isabel chorou copiosamente, ao lembrar-se do sofrimento a que Jesus fora submetido quando encarnado, e reconheceu que o sofrimento de sua filha nada fora em comparação ao dele.
Pai José esperou o estado emocional dela tornar a normalidade e disse-lhe:
- Nêgo véio gostou da sinceridade do seu coração, mas aqui no dia de hoje nóis não estamos trabalhando o sofrimento de sua filha; até mesmo por que ela não sofre mais onde se encontra, já que está disposta em repouso em uma câmara de vitalidade aguardando o despertar em momento oportuno!
- Verdade?
- Sim zifia! No dia de hoje trabalhamos o seu sofrimento!
- É vovô! Cada um com seu carma!
- Filha, carma não é sofrimento, é libertação!!!
- Como assim?
- Carma, zifia Isabel,é ter humildade de clamar sabedoria a Deus diante dos desafios que são apresentados na vida de cada um, pois uma vez aprendido o ensinamento, com fé, humildade e resignação, evolui-se em direção a Deus-Nosso-Pai.
- Como assim?
- Na vida existe o carma não para nos causar sofrimentos, mas para possibilitar libertação, que é possível de acontecer, se tivermos sabedoria para vencer os desafios no caminho.
- Creio que entendi. A morte de um ente querido é um desafio natural da existência humana. O carma não é sofrer com a perda, uma vez que o sofrimento é natural nestes casos, mas sim alcançar a liberdade incondicional ao vencermos tal desafio.
- Zifia, tempos atrás suncê contou que a entidade que lhe assiste nas incorporações, o Caboclo Araribóia, apareceu duas vezes em sonho pra suncê e pedia que suncê continuasse a andar na estrada, não é verdade?
- Isto vovô! Ele aparecia e me mostrava uma estrada em que eu devia voltar a caminhar!
- Pois então zifia saiba que tal estrada não é necessariamente este terreiro, mas sim a Umbanda sagrada.
- Verdade?
- Certamente zifia, se suncê quiser sair do terreiro as portas vão estar abertas assim como se encontravam quando suncê por elas neste terreiro adentrou pela primeira vez. O importante na sua vida não é o terreiro zifia, o importante é a Umbanda!
- Isto é verdade mesmo Pai José por que, antes de eu entrar neste terreiro há três meses, fiquei cinco anos afastada da Umbanda!
- Nêgo véio entede zifia! Foi quando seu esposo faleceu, não foi?
- Foi isto mesmo vovô!
- Após vinte e cinco anos de casados o seu esposo faleceu de câncer e suncê, como forma de homenagear o amor que sempre houve entre suncês, decidiu prestar trabalho voluntário em alas de hospitais onde estão internadas crianças que possuem câncer, não é verdade?
- Como o senhor sabe disto vovô? Eu nunca contei para ninguém?!?
- Foi o Caboclo Araribóia zifia!
- Ah é? Por que vovô?
- Por que para Deus o bem maior tá acima das individualidades.
- Como assim? O senhor poderia explicar?
- Filha o câncer em sua família não é sofrimento, é carma! Possibilidade de libertação em direção a Deus.
- Isto eu entendo.
- Carma é cumprimento da Lei maior e da Justiça divina na vida de seus humanos filhos! Quando estes se envolvem consistentemente em trabalhos caritativos, o Pai envia sua misericórdia como um bálsamo em suas vidas.
- Entendo.
- O teu trabalho voluntário em favor das criancinhas fez com que suncê recebesse a oportunidade de ter a sua filha tratada e assistida pelos médicos do astral para que viesse a ter um desencarne sereno e indolor!
- Meu Deus, eu jamais poderia imaginar! Ela realmente nada sofreu!
- Estou autorizado a dizer mais a suncê zifia: sabendo que suncê somatiza com muita facilidade o sofrimento dos que lhes são próximos, foi que o caboclo Araribóia criou condições de suncê voltar para a Umbanda, como uma forma de evitar que isto ocorresse.
- Meu Pai! Deus é muito bom!
- Até mesmo por que, se isto ocorresse, as crianças assistidas por suncê voluntariamente ficariam sem ter como receber o lenitivo que suncê mais lhes proporciona: o doce remédio do sorriso.
Dona Isabel chorava muito a cada vez que dizia:
- Deus é bom! Obrigada meu Deus! Obrigada!
Pai José esperou sua consulente serenar as emoções e, para encerrar aquele atendimento, disse-lhe:
- Foi o que este nêgo disse a suncê zifia: Zambi-Nosso-Pai enviou Jesus ao mundo para que todos pudessem alcançar a oportunidade de salvarem suas vidas do ódio, do egoísmo, do orgulho e do desamor, pois para Deus o bem maior está acima das individualidades, e é por isto também que a misericórdia Dele é, de fato, infinita! Vá na força e na luz de Deus-Nosso-Senhor!!!!  
- Amem,vovô! Amem!