quarta-feira, 17 de setembro de 2008

A história de João


Coronel Azevedo, rico fazendeiro do interior paulista, encontrava-se a ponto de enlouquecer devido ao definhamento progressivo de sua esposa, ocasionado por uma doença que os médicos não conseguiam diagnosticar e nem curar.
Estamos no ano de 1856 e podemos ver que uma das igrejas mais suntuosas de todo o interior paulista, nesta época, encontrava-se no município onde residia o coronel e que esta fora erguida única e exclusivamente com o dinheiro dele: é que o poderoso e orgulhoso coronel era um homem fervorosamente religioso. Acontece que nem o dinheiro, os melhores médicos ou os melhores religiosos conseguiam curar a esposa dele; aliás, fora esta, a bondosa sinhá Helena, que certa vez sugerira ao esposo que procurasse a ajuda de um negro da sua própria senzala e que tinha fama de curador.
Nesta ocasião, inclusive, o coronel olhou para a sinhá com um olhar incrédulo e orgulhoso quando lhe disse: “Para o seu próprio bem, nunca mais quero escutar da sua boca a mínima menção sobre esta possibilidade!!!”.
Caminhando com passos furiosos o coronel saiu marchando dos aposentos do casal batendo a porta estrondosamente. A sugestão da esposa constituía um desaforo para ele: imagine só se o “Todo-Poderoso” coronel, um religioso fervoroso que aprendera que os negros não possuíam alma, se rebaixaria a tal ponto de pedir auxilio a um negro ignorante em favor da saúde de sua esposa.
É, meus filhos, mas não há nada como o desespero para nos fazer engolir nosso orgulho e empáfia em favor daqueles que amamos!!! Digo isto por que um trimestre após esta conversa do sinhozinho Azevedo com a sinhá Helena ela definhava a olhos vistos: o corpo dela estava quase à pele e osso, a pele mais alva do que parafina e a cabeça sem a maior parte de todos os fios negros, longos e sedosos que tanto lhe caracterizavam a bela e vasta cabeleira.
Somente quando a situação já estava assim tão triste foi que o coronel veio conversar comigo nestes termos:
— Sente-se negro maldito!
Sem pensar duas vezes eu me sentei em um toco em frente dele sem lhe olhar no rosto, pois ele não admitia que os negros olhassem diretamente em seus olhos e, então, ele continuou:
— Você sabe que é um imprestável, não é:
— Sei sim, sinhozinho.
— Você sabe que me é inferior, não sabe?
— Sei sim, sinhozinho.
— E por que você me é inferior, seu negrinho?
— Isto eu não sei não, sinhozinho!
— Pois então eu lhe digo: você me é inferior porque é meu escravo e eu sou seu superior porque sou dono da sua vida.
Nêgo pode dizer uma coisa sinhozinho?
— Fale imprestável!
— Olha, é que esse nêgo realmente é escravo do sinhozinho, mas só que suncê não pode ser dono da vida de nêgo.
— Como é, seu insolente?
Assim respondeu o coronel avançando em direção a mim com a bengala em riste pronto para me acertar.
— O sinhozinho é dono do meu corpo, mas só Deus pode ser dono da minha vida!
O coronel parou estupefato e boquiaberto quando lhe falei sobre Deus e abaixou sua bengala, já eu, vendo que não poderia perder aquela oportunidade, resolvi continuar a prosa:
— Foi Deus quem me deu um espírito e a verdadeira vida é a espiritual, então como o sinhozinho não pode ser dono do meu espírito, então também não pode ser dono da minha vida.
— Cuidado com o que diz negro porque posso lhe arrancar a língua!
— Este nêgo sabe disso sinhozinho.
— E como se atreve a falar comigo nestes termos?
Nêgo pensa que o que ele disse para o sinhozinho não é atrevimento, mas necessidade.
— Necessidade?
— É sinhozinho, pois para nêgo seria um pecado deixar suncê dizer que é o dono da vida dele.
— E por que seria um pecado?
— Pelo amor e adoração que tenho a Deus.
— Um negro que crê em Deus e que pensa possuir uma alma isto até que é interessante!
— Sinhozinho este nêgo pode...
— ...Cale-se negro atrevido por que eu não vim aqui para tagarelar com você, mas sim porque fiquei sabendo de sua fama de curador.
— Sim senhor!
— Diga-me, é verdade que você é curador?
— Sinhozinho nêgo só tem o dom, quem cura mesmo é Deus!
— Como ousa dizer que quem cura por ti é Deus se já fui a várias igrejas e estive com excelentes religiosos sem que nenhum deles conseguisse curar a minha Helena; você se acha mais poderoso que os padres ou julga que Deus só escuta você?
— De forma nenhuma sinhozinho!!!
— Acho bom mesmo!!!
— Sinhozinho este nêgo já esteve duas vezes na casa grande e viu que nela tem um cômodo cheio de quadros, não é verdade?
— O que a casa grande tem a ver com a pergunta que lhe fiz?
— Por caridade sinhozinho, nêgo vai responder pra suncê, mas ajude a ele por caridade. Não é verdade, sinhozinho?
— É sim negrinho metido, na minha sala de estar há várias obras de arte de grandes gênios da pintura.
— Cada quadro foi pintado de um jeito, não é sinhozinho?
— Sim, pois cada pintor tem o seu estilo, mas isto seria informação demais para sua pobre mente entender.
Nêgo concorda com suncê sinhozinho, mas nêgo pergunta: se um pintor tentasse pintar com o estilo do outro, ele conseguiria?
— Óbvio que não!!!
— E existe gênio maior que Deus?
— Não blasfeme perante o nome do Senhor!!!
— Não é blasfêmia sinhozinho!
— É bom mesmo que não seja e quanto a sua pergunta é óbvio que a resposta também é não: não existe gênio maior que Deus!!!
— Então sinhozinho e Deus, em sua infinita genialidade e sabedoria, deu vários dons a várias pessoas diferentes para que o excelso amor e genialidade Dele pudessem ser manifestados de formas diferentes, assim é que cada pintor pode pintar uma mesma paisagem de forma diferente e cada curador pode curar uma mesma pessoa de forma diferente.
O coronel sentindo-se vencido em todas as forças do seu ser pelo sentimento de paz que este nêgo simples que vos fala amorosamente irradiava para ele sentou-se, pasmem, num toco que estava posicionado a minha frente.
Este nêgo sentia que as próximas palavras que iria dizer lhe custariam à própria vida, mas inexplicavelmente toda vez que eu pensava em vacilar via a imagem de Jesus sendo açoitado até o local em que fora crucificado e justamente esta imagem de uma forma, na época, inexplicável para mim forneceu forças para que eu dissesse ao sinhozinho o que relato a seguir:
— Sinhozinho, este nêgo pode dizer uma coisa?
— Não me aborreça e fale de uma vez!
— É que já tem três meses que eu vejo cinco vultos negros acompanhando a sinhá Helena.
— Como é? Vultos?
— É sinhozinho, são vultos que o meu povo chama de eguns.
— Explique-se!!!
— Eguns, sinhozinho, são espíritos de gente que já morreu!
— Você quer ir para o tronco negrinho?
— Não sinhozinho!
— Você não sabe que quem morre vai para o céu ou para o inferno?
— Sinhozinho isto inté já ouvi falar, mas é que este nêgo gosta tanto da sinhá Helena que para ele seria mais do que um dever: seria uma honra cura-la!
— E de onde vem esta sua admiração negrinho?
— Essa admiração não é só de nêgo não sinhozinho e nem é só de todos os negros da sua senzala, mas até mesmo de inúmeros negros das senzalas de outros fazendeiros!
— Mesmo? E por quê?
— Por que a sinhá pode inté achar que nós negros não temos alma e que não somos gente, mas trata-nos como se fossemos. É por isso que esse nêgo, com as forças de Deus, faz questão de ajudar a afastar os eguns da sinhá e trazer a saúde dela de volta.
— Muito bem negrinho, você terá três meses para curar Helena por que se isso não ocorrer você morrerá antes dela, posso lhe garantir!!!
— Sinhozinho ta dando três meses pra nêgo porque foi esse o tempo de vida que os doutor de terra deram pra sinhá, não é mesmo?
O coronel ficou boquiaberto com o comentário que eu fizera a ele e, aproveitando o ensejo, eu continuei a conversa:
— Acontece que o sinhozinho não vai precisar esperar tanto porque em menos de sete semanas a sinhá, com as forças de Zambi, há de voltar a passear por esses campos como uma borboleta quando sai do casulo.
O sinhozinho Azevedo sentiu o coração bater descompassado de tanta e emoção e esperança com as palavras que este nêgo disse a ele, mas ainda assim ele olhou pra mim e falou:
— Não brinque comigo negrinho e nem com sua sinhá, cure-a ou pagará com a própria vida!!!
Sete semanas se passaram e, na força de Zambi Nosso Pai, a sinhá Helena recuperou sua saúde. Os dias foram passando um após outro e esse nêgo começou a pensar que a aflição que sentira em perder a própria vida quando tivera àquela conversa com o sinhozinho dizendo que a sinhá estava enfeitiçada deveria de ser fogo de palha.
Mas três meses depois de nêgo ter tido àquela conversa com o coronel ele veio até nêgo e disse:
— Negrinho, você disse que minha mulher estava enfeitiçada, certo?
— Sim, sinhozinho!
— E quem me garante que, querendo alforria, você não a enfeitiçou para depois desenfeitiça-la e, assim, ganhar minha confiança e liberdade?
— Mas nêgo venera sinhá Helena sinhozinho, nêgo jamais faria isto!!!
— Então negrinho, quer dizer que não foi você, certo?
— Sim sinhozinho, não foi nêgo.
— Então, negro maldito, diga-me quem foi se não quiser perder a própria vida!
— Mas nêgo não sabe sinhozinho, nêgo jura por Deus.
— Mas você é muito insolente hein negrinho? Quem você pensa que é? Quero o nome agora ou você morre!
— Mas nêgo não sabe quem foi, nêgo só sabe que foi alguém por que feitiçaria nenhuma se faz sozinha.
— Pois bem negrinho se estou entendendo bem, alguém enfeitiçou minha Helena e você não sabe quem foi, certo?
— Sim sinhozinho!
— Mas, se você quisesse, poderia mandar o feitiço de volta para quem quis matar a sua sinhá?
— Poderia sim senhor!
— Então faça!!!
— Mas nêgo não pode fazer isto!
— Por que não?
— Por que nêgo só faz o bem, não faz o mal.
— E acabar com a raça de quem quase matou a sinhá que você diz tanto adorar, não é fazer o bem?
— Não sinhozinho, é vingança!!! Nêgo aprendeu com Jesus: “Amai os vossos inimigos”
É, meus filhos, nessa hora nêgo recebeu um golpe de bengala do sinhozinho tão forte na cabeça que ficou muito tempo desacordado.
Algumas horas depois, ao acordar, nêgo descobriu que estava amarrado no tronco e que a bengalada tinha me deixado cego das vistas.
Quando chegou a noitinha do mesmo dia nêgo começou a apanhar do feitor. Era uma chibatada após outra. No inicio elas doíam muito, mas depois eu percebi que não estava sentindo mais dor e, enquanto tudo isto acontecia, eu inexplicavelmente comecei a ver o mestre Jesus apanhando em sua trajetória até a crucificação e, mesmo não tendo a pele negra naquela época, eu sabia que era um daqueles soldados que o açoitava, sim, este mesmo nêgo véio que agora apanhava no tronco, mas ao invés de sentir dor e remorso eu sentia era a minha alma livre, minha consciência tranqüila e uma inimaginável paz de espírito.
E foi assim que esse nêgo desencarnou em sua ultima encarnação na terra, na primavera do ano de 1856: nêgo viera para purificar sua consciência dos castigos que infligira ao divino mestre na trajetória do calvário Dele.
Para nêgo terminar esta prosa com todos suncês que estão lendo estas linhas, nêgo fala que hoje em dia ele não é mais escravo, mas que continua cativo. Só que, atualmente, não mais por algemas e grilhões, mas pelo amor que ele sente por todos suncês encarnados na terra.
Suncês que desculpem nêgo , mas desta “prisão” ele não quer sair nunca: é que nêgo ama estar “preso” a uma linha de trabalho da umbanda que também ajuda os seus filhos de fé a não serem mais escravos de seus vícios, más tendências e imperfeições, pois na verdade meus filhos é nisto que se constitui a real liberdade!!!!

Que Zambi Nosso Pai abençoe a todos suncês!!!!!

Mensagem de Nêgo João recebida em 14/05/2008