Isabel caminhava em direção a Pai
José. Ela estava prestes a comunicar-lhe sua decisão: pediria afastamento do
terreiro.
- Boa noite zifia! Como vai
suncê?
- Boa noite Pai José! O Senhor já
sabe o que vim fazer aqui hoje, não sabe?
- Filha se este nêgo véio tivesse
este poder ele não seria Pai José, mas sim o próprio Deus, pois só Ele sabe de
todas as coisas.
- Como assim vovô?
- Nós não somos advinhos zifia!
Se suncê veio aqui é por que tem algo a dizer e este nêgo tá aqui, de coração
aberto, só para te escutar!
- Então acho que tenho que dizer
de uma vez só, não é vovô?
- Da forma que for melhor pra
suncê.
- É que eu vou pedir desligamento
do terreiro. O que o senhor acha disto?
- Zifia toda decisão indica um
caminho que é sinalizado por pensamentos e sentimentos. Onde este caminho vai
dar, abaixo de Zambi, só teu pensar e sentir que poderão lhe dizer.
- Como assim Pai José?
- Bom senso minha filha! Toda
decisão, de todo ser humano, deve ser pautada pelo bom senso.
- O senhor está dizendo que esta
minha decisão não está baseada no bom senso?
- De forma alguma! Nêgo véio não
faz julgamento de valor! Só estou explicando para a filha que a ilusão
obscurece o bom senso.
- Ilusão? Como assim?
- Só um instantinho minha filha.
A entidade pediu que seu cambone
trouxesse um copo de água em temperatura ambiente e outro de água gelada.
Somente quando ele voltou foi que a entidade disse a Isabel:
- Zifia estique sua mão direita e
diga se este líquido está quente ou frio.
O preto-velho derramou um pouco
de água em temperatura ambiente na mão dela que respondeu-lhe:
- Nem quente, nem fria: está em
temperatura ambiente.
- Continue com a mão estendida.
Pai José derramou a água gelada,
que seu cambone trouxera, na destra de sua consulente que falou-lhe:
- Este líquido está gelado!
- Permaneça com sua mão esticada!
O preto-velho tornou a derramar
água em temperatura ambiente na mão de Isabel, que disse:
- Esta água parece quente.
- Suncê viu de onde nêgo tirou
esta água que suncê falou que parece quente?
- Vi sim senhor. Foi do copo com
água em temperatura ambiente!
- E como a mesma água que antes
suncê respondeu que estava em temperatura ambiente, de repente pareceu quente?
- É que a água que o senhor derramou
na minha mão antes desta estava muito gelada.
- Muito bem zifia! Suncê é muito
sabida! Percebe o que a ilusão dos sentidos pode fazer com seu julgamento? Seu
pensamento? Seu sentimento?
- Não totalmente!
- Não se preocupe minha filha!
Continue a prosear com este véio que Deus, em sua infinita misericórdia, há de
fazê-la entender certas coisas.
- Vovô eu não consigo mais ver
sentido em ficar aqui: o senhor sabe que minha filha, que assim como eu era
médium desta casa, acabou de desencarnar fulminantemente por conta de uma
enfermidade que ninguém pôde diagnosticar a tempo de salvá-la!
- Salvá-la de que, zifia?
- Do que? Da morte!
- Mas não existe morte zifia: só
existe vida, ainda que em outro plano da existência!
- Nenhuma entidade contou nada
para mim ou para ela, que só foi saber da doença quando passou mal e os médicos
a diagnosticaram como enferma, após realização de vários exames.
- Suncê se sentiu traída por nós,
minha filha?
- Vocês sabiam da doença?
- Era visível a nóis, pelo
perispírito!
- Então devo dizer que me senti
traída, pois vocês não me alertaram.
- Nóis passamos um tratamento
para a zifia!
- Sim e ela o seguiu, mas foi um
tratamento que o senhor sabia que não resolveria o problema dela, que não a
ajudaria. Vocês não nos alertaram!
- Zifia, e de que adiantaria
nosso alerta se a doença começara a se desenvolver em sua filha há dez meses?
Se a situação da saúde de sua filha era irreversível há cinco meses e se suncês
entraram para a corrente mediúnica do terreiro há três meses?
- Mas vocês poderiam ter nos
alertado, nos preparado!
- Preparar? Desculpe a franqueza
zifia, mas a preparação para a verdade imutável que é o desencarne deve
acontecer todo dia e a todo o momento, e isto não é pensar negativo, mas sim
com humildade e sabedoria, pois só Deus sabe a hora de cada um.
- Eu vou sair porque acho que
vocês poderiam ter nos preparado!
- Filha há muito tempo, quando
suncê tinha dezesseis anos, seu pai faleceu da mesma moléstia que sua filha
apresentou!
- É verdade!
- Seu pai lutou contra a moléstia
por quase treze meses.
- Isto também é verdade!
- E foi justamente durante estes
treze meses que suncê, somatizando todo o sofrimento pela condição de saúde de
seu paizinho, desenvolveu uma úlcera gástrica que tanto lhe incomoda até os
dias de hoje.
- É verdade.
- Agora minha filha, abrindo seu
coração com honestidade, responda:
- Em que lhe ajudou saber sobre a
doença de seu pai?
- Acho que começo a entender o
senhor.
- Zifia Isabel este nêgo véio
fala a suncê que nóis, que suncês chamam de entidades, não somos advinhos!
- Somos falangeiros que militam
pela Lei maior e pela Justiça divina! Para Deus a caridade que se faz a um de
Seus filhos é uma caridade feita para toda a humanidade!
- Entendo.
- Deus tem amor enorme por cada
uma de suas criaturas, só que para Deus o bem maior está acima das individualidades
e foi por isto que ao mundo Ele enviou Jesus.
Isabel chorou copiosamente, ao
lembrar-se do sofrimento a que Jesus fora submetido quando encarnado, e
reconheceu que o sofrimento de sua filha nada fora em comparação ao dele.
Pai José esperou o estado emocional
dela tornar a normalidade e disse-lhe:
- Nêgo véio gostou da sinceridade
do seu coração, mas aqui no dia de hoje nóis não estamos trabalhando o
sofrimento de sua filha; até mesmo por que ela não sofre mais onde se encontra,
já que está disposta em repouso em uma câmara de vitalidade aguardando o
despertar em momento oportuno!
- Verdade?
- Sim zifia! No dia de hoje
trabalhamos o seu sofrimento!
- É vovô! Cada um com seu carma!
- Filha, carma não é sofrimento,
é libertação!!!
- Como assim?
- Carma, zifia Isabel,é ter
humildade de clamar sabedoria a Deus diante dos desafios que são apresentados
na vida de cada um, pois uma vez aprendido o ensinamento, com fé, humildade e
resignação, evolui-se em direção a Deus-Nosso-Pai.
- Como assim?
- Na vida existe o carma não para
nos causar sofrimentos, mas para possibilitar libertação, que é possível de
acontecer, se tivermos sabedoria para vencer os desafios no caminho.
- Creio que entendi. A morte de
um ente querido é um desafio natural da existência humana. O carma não é sofrer
com a perda, uma vez que o sofrimento é natural nestes casos, mas sim alcançar
a liberdade incondicional ao vencermos tal desafio.
- Zifia, tempos atrás suncê
contou que a entidade que lhe assiste nas incorporações, o Caboclo Araribóia, apareceu
duas vezes em sonho pra suncê e pedia que suncê continuasse a andar na estrada,
não é verdade?
- Isto vovô! Ele aparecia e me
mostrava uma estrada em que eu devia voltar a caminhar!
- Pois então zifia saiba que tal
estrada não é necessariamente este terreiro, mas sim a Umbanda sagrada.
- Verdade?
- Certamente zifia, se suncê
quiser sair do terreiro as portas vão estar abertas assim como se encontravam
quando suncê por elas neste terreiro adentrou pela primeira vez. O importante
na sua vida não é o terreiro zifia, o importante é a Umbanda!
- Isto é verdade mesmo Pai José
por que, antes de eu entrar neste terreiro há três meses, fiquei cinco anos
afastada da Umbanda!
- Nêgo véio entede zifia! Foi
quando seu esposo faleceu, não foi?
- Foi isto mesmo vovô!
- Após vinte e cinco anos de
casados o seu esposo faleceu de câncer e suncê, como forma de homenagear o amor
que sempre houve entre suncês, decidiu prestar trabalho voluntário em alas de
hospitais onde estão internadas crianças que possuem câncer, não é verdade?
- Como o senhor sabe disto vovô?
Eu nunca contei para ninguém?!?
- Foi o Caboclo Araribóia zifia!
- Ah é? Por que vovô?
- Por que para Deus o bem maior
tá acima das individualidades.
- Como assim? O senhor poderia
explicar?
- Filha o câncer em sua família
não é sofrimento, é carma! Possibilidade de libertação em direção a Deus.
- Isto eu entendo.
- Carma é cumprimento da Lei
maior e da Justiça divina na vida de seus humanos filhos! Quando estes se
envolvem consistentemente em trabalhos caritativos, o Pai envia sua
misericórdia como um bálsamo em suas vidas.
- Entendo.
- O teu trabalho voluntário em
favor das criancinhas fez com que suncê recebesse a oportunidade de ter a sua
filha tratada e assistida pelos médicos do astral para que viesse a ter um
desencarne sereno e indolor!
- Meu Deus, eu jamais poderia
imaginar! Ela realmente nada sofreu!
- Estou autorizado a dizer mais a
suncê zifia: sabendo que suncê somatiza com muita facilidade o sofrimento dos
que lhes são próximos, foi que o caboclo Araribóia criou condições de suncê
voltar para a Umbanda, como uma forma de evitar que isto ocorresse.
- Meu Pai! Deus é muito bom!
- Até mesmo por que, se isto
ocorresse, as crianças assistidas por suncê voluntariamente ficariam sem ter
como receber o lenitivo que suncê mais lhes proporciona: o doce remédio do
sorriso.
Dona Isabel chorava muito a cada
vez que dizia:
- Deus é bom! Obrigada meu Deus!
Obrigada!
Pai José esperou sua consulente
serenar as emoções e, para encerrar aquele atendimento, disse-lhe:
- Foi o que este nêgo disse a
suncê zifia: Zambi-Nosso-Pai enviou Jesus ao mundo para que todos pudessem
alcançar a oportunidade de salvarem suas vidas do ódio, do egoísmo, do orgulho
e do desamor, pois para Deus o bem maior está acima das individualidades, e é
por isto também que a misericórdia Dele é, de fato, infinita! Vá na força e na
luz de Deus-Nosso-Senhor!!!!
- Amem,vovô! Amem!