Nêgo véio lembra até hoje o
primeiro dia que conversou com a zifia Carla.
De longe este nêgo já via que o
semblante de zifia indicava tremenda tempestade interior.
A zifia chegou na frente de nêgo,
pediu licença para sentar e disse:
- Pai Sebastião, a minha vida
precisa mudar!
E mais zifia num conseguiu dizer por
que começou a soluçar de choro. Então, nêgo pegou as mãos da zifia e disse:
- Se é para começar a mudar
zifia, então na força de Deus-nosso-pai, vamos começar agora! Este nêgo pede
simplesmente que suncê chore minha filha!!! Chega de prender estas lágrimas!
Chega de prender esta dor! Se nóis dois vamos trabalhar com Jesus pra sua vida
começar a mudar, então suncê tem que compartilhar sua dor.
Zifia Carla continuava num
chororô sem fim e Véio viu sério problema no chacra cardíaco dela. Peguei a
vela que tava no ponto, pedi a cambone pra acender meu pito e procurei dar um
passe bem butado* na zifia.
Aos poucos os soluços foram parando,
as lágrimas diminuíram e, quando finalmente cessaram, disse a ela:
- Com o poder de Zambi*, zifia, não existe tempestade
que não cesse!
- É verdade vovô! Parece que tudo
ficou mais leve, apesar do problema continuar.
- De qual problema suncê fala,
zifia?
- Ah Pai Sebastião nos últimos
anos parece que existe um complô de inimigos espirituais para atrapalhar toda
minha vida!
- Não só a sua zifia, mas a de
todos os zifios criados por Zambi-nosso-pai.
- Sério?
- Mas num tá escrito no livro
sagrado que os adversários espirituais andam em derredor, rugindo como leão e procurando
a quem possa tragar?
- Também num tá escrito que a
luta não é contra a carne e o sangue, mas, sim, contra os principados, contra
as potestades, contra as hostes espirituais da maldade?
- É verdade vovô! Mas por que
eles me perseguem?
- Zifia Carla, nêgo veio observa
que suncê tem certo conhecimento sobre as coisas do espírito, certo?
- Sim senhor!
- Estes, que suncê diz serem seus
inimigos, são adversários de outras eras, outras encarnações zifia.
- Mas o que fazer para me livrar
deles?
- Também tá escrito no livro
sagrado: “ faça sua parte que o céu te ajudará”.
- Como assim?
- Suncê num deve viver sua vida
pautada pelo medo, mas pela fé em Deus!
- Mas eu tenho muita fé! Só que
esta fé não está impedindo estes adversários de me atrapalharem a conseguir um
emprego.
- Zifia, na verdade, é suncê que
tá atrapalhando a si mesma.
- Eu? Mas o senhor não falou que
estou sob atuação de adversários espirituais?
- Sim! Mas a pergunta é: Como
eles chegaram até suncê? Qual porta suncê abriu pra que o leão pudesse entrar?
Tá entendendo zífia?
- Agora sim! Mas não saberia dizer qual foi a porta que
abri! A única porta que está aberta há três meses em minha vida e que não
consigo fechar é a porta do desemprego!
- Mas seus adversários não
adentraram por esta porta! A porta pela qual eles entraram foi aberta bem antes
dessa.
- Ah é?!???
- Zifia a mim tá sendo mostrado,
pelos seus próprios mentores espirituais, que há sete meses suncê se frustrou
com sua ex-chefe por não haver recebido certa promoção no emprego, não é
verdade?
- Sim, mas o que isto teria a
ver? Frustração é comum quando você está mais preparada para exercer uma função
e a pessoa promovida para exercê-la não tem metade de sua qualificação.
- Zifia, num cai uma folha da
árvore se num for da vontade de Deus! Suncê já parou pra pensar que não é
possível conhecer os desígnios de Deus? Que aquela não era sua hora não por
falta de qualificação, mas, pelo menos naquele momento, por falta de
merecimento?
- É duro reconhecer tal
possibilidade, mas acho que é isso mesmo! Então esta foi a porta que eu abri?
- Não.
- Não?
- Não zifia. Suncê num é zifia de
andar com a crista baixa! Com o ocorrido suncê num ia ficar se lamentando e se
auto-depreciando, muito pelo contrário; orgulhosa que suncê é, após o ocorrido
suncê passou a querer demonstrar, de todas as formas, que sua chefe tinha
promovido a pessoa errada.
- Passou a agir com altivez em
relação aos colegas, começou a executar tarefas que estavam acima de seu cargo,
até que quatro meses depois um grande negócio não foi fechado e suncê foi
responsabilizada! Daí suncê foi demitida, num foi assim?
- Foi Pai Sebastião, foi assim
mesmo! Concordo quando o senhor diz que sou orgulhosa. Passei a viver com muita
raiva e foi aí que abri a porta não é?
- Não!
- Não?
- Não zifia! Aí foi quando suncê a
deixou entreaberta!
- Sério? E quando foi que a abri?
- Por que suncê não contou ao
esposo que tá desempregada?
- Por que é um direito meu! Estou
ajudando em casa com o dinheiro do seguro! Não tem problema nenhum!
- Todo santo dia suncê sai de
casa dizendo ao esposo que tá indo trabalhar enquanto, na verdade, tá
procurando emprego.
- E qual o problema vovô? Não
estou entendendo?
- Qual dificuldade suncê teria
pra dizer ao esposo que tá desempregada? Ele é um mau esposo? Poderia maltratar
suncê com algum tipo de violência?
- Não vovô, é muito pelo
contrário!
- Suncês não juraram fidelidade
um ao outro?
- Pensei que fosse coisa boba.
- Orgulho é coisa muito séria
zifia! São três os pilares que mantém suncês em harmonia: religião, família e
trabalho. A religião suncê num professa há algum tempo, o trabalho suncê perdeu
há alguns meses e o relacionamento com seu esposo também não vai muito bem,
logo zifia, suncê chegou aqui hoje em grande desarmonia interior.
- Então quer dizer que se contar
ao Paulo sobre o desemprego, eu vou conseguir ser recolocada no mercado de
trabalho?
- Zifia, acho que num devo ter
conseguido explicar direito: o orgulho zifia é uma enfermidade da alma! Ele
corrói as defesas psíquicas, atrai parasitas astrais que corroem a aura,
alcançam os centros de força*
fazendo suncês padecer no corpo físico e podendo até levar suncês ao
desencarne.
- O silêncio de zifia com o
marido não é a causa da enfermidade que provocou a abertura da porta, mas um
sintoma dela, desta enfermidade tão perniciosa conhecida como orgulho.
- Então falar com ele não vai
adiantar de nada?
- Vai atuar como porta de entrada
para o tratamento da moléstia.
- E os adversários espirituais?
- Também são sintomas da doença.
- Existe tratamento para esta doença?
- Claro zifia Carla! Suncê veio
ao mundo para isto!
- Ah é?
- Claro zifia! Foi sua conduta
orgulhosa em vidas pregressas que atraíram tais adversários para sua vida.
- Seu tratamento zifia deve ser
realizado com um santo remédio: o amor! O amor é um santo remédio e cobre uma
multidão de pecados!
- E onde eu consigo deste
remédio?
- Está dentro de você, só que
praticamente inerte, é preciso movimentá-lo!
- E como faço isto?
- Amando a Deus acima de todas as
coisas e ao próximo como a ti mesmo!
- Como assim?
- Reaproxime-se de
Zambi-nosso-pai! Ele vai aquecer seu coração e fazê-la encontrar o amor Dele
que habita o seu interior.
- Entendi.
- Também está na hora de retomar
sua jornada na Umbanda, fazer a caridade, dar o pouco que se tem aos que tem
menos ainda! Fazendo isto a porta tornará a se fechar e os adversários não
terão como lhe alcançar.
- Entendi, mas e o emprego?
- Faça sua parte que o céu lhe
ajudará!!!
- Tenho fé em Deus que sim!!! Vou
fazer como o senhor pediu. Muito obrigada por tudo!!!
- Agradece a Nêgo não zifia, só a
Zambi nosso pai!!!
Zifia Carla se foi e demorou um
ano pra tornar a conversar com este Nêgo Véio. Estava freqüentando a Umbanda em
um Terreiro bem mais próximo da casa dela, e isto já há um ano. Conseguira
emprego para exercer função de mais responsabilidade do que aquela que queria
antes. Apareceu grávida de sete meses pra conversar com este nêgo.
Disse que tinha vindo ali não
para agradecer, já que este Nêgo tinha pedido pra ela agradecer só a Deus
quando recebesse alguma benção, mas que tava ali pra dizer que o nome do filho
dela seria Sebastião, para homenagear a este preto-velho.
Nêgo tentou de todas as formas
tirar esta idéia da cabeça da zifia pedindo que ela colocasse o nome de Jesus
no curumim*, a fim de homenagear ao nosso
amado mestre; ou então com o nome de Marcos, Mateus ou algum evangelista, pois
homenageando a eles aí sim, este Nêgo estaria se sentindo homenageado.
Mas aí a zifia declinou
justificando que cada vez que olhasse para o curumim de nome Sebastião se
lembraria do compromisso que fizera de ser uma pessoa mais humilde e se
sentiria incentivada a continuar se esforçando a amar a Deus e ao próximo com
mais ímpeto; enfim, disse que sempre se lembraria de cuidar em educar o curumim
para ser um indivíduo mais humilde do que ela, talvez, pudesse ser um dia.
Este nêgo véio nunca deixa de se
impressionar com a infinitude do amor de Deus. Uma zifia que reencarnara amiga
do orgulho agora se esforçava ao máximo para manter estreitos laços com a
companheira humildade e, mais do que isso, teria o compromisso firmado em
apresentá-la ao seu curumim desde o seu primeiro sopro de vida!
Salve Zambi-Nosso-Pai!!!
Salve o perdão! Salve o amor!
Salve a humildade!!!
*Butado = bom
*Zambi = Deus
*Centro de força =
chacras
*Curumim = criança