terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Sobre a certeza




— Márcia você me desculpe lhe falar mais uma vez amiga, mas é que eu realmente penso que você deveria ir comigo lá no terreiro.
— Bobagem Vera, isto é coisa de ignorante!
— Ignorante amiga? Então quer dizer que você julga-me como tal?
— Não Vera! Apenas digo que as pessoas que fazem parte destes centros são ignorantes.
— Os médiuns?
— Exatamente!
— Mas lá na corrente do terreiro que eu freqüento como assistência existem médicos, professores, entre outros.
— Então, eles são doutos na profissão que exercem, mas ignorantes por acreditarem em contos de fadas.
— Desculpe pela insistência minha amiga, mas é que eu estou muito preocupada com esta sua tontura que nenhum dos médicos que você visitou encontrou explicação plausível.
— Eu sei Vera, eu sei!
— Então amiga, o que lhe custa dar uma chance para que as entidades que militam na umbanda possam lhe auxiliar? Você não quer acabar com esta tontura?
— Puxa, já perdi as contas de quantas vezes você abordou este assunto comigo!!!
— Perdão! Eu não mais lhe aborrecerei!
— Não Vera, eu vou contigo! Está na hora de acabar com esta história de uma vez!
— Então você vai?
— Vou!
— Graças a Deus!
— Quando é a sessão?
— Hoje a noite, às 20;00 horas.
— Pode deixar que eu não faltarei.
Naquela sexta-feira à noite, precisamente às 20h45min, Márcia sentou-se em um toco para receber a consulta do caboclo Rompe-mato que disse-lhe:
— Salve Tupã filha!
Ao que ela respondeu:
— Salve!
— Este caboclo ignorante só gostaria de saber em que poderia auxiliá-la.
Márcia pensou: “ será que esta entidade sabe o que eu penso a respeito desta seita?”
— Religião filha!
— Como?
— A umbanda não é uma seita, é uma religião!
— Então você pode ler meus pensamentos?
— Posso ver somente aquilo que Tupã julgar que seja importante para auxiliá-la.
— Então por que você... caboclo Rompe-mato, não é isso?
— Exatamente!
— Por que você não me diz o que vim fazer aqui nesta noite? Será que Deus permitiria que você visse?
— Já vi!
— Viu?
— Você pode até não saber, mas veio até aqui para acabar com uma certeza dentro de você!
— Acho que você não viu direito!
— Filha eu não devo tentar convence-la de nada. Eu só posso dizer aquilo que a Lei me permita revelar.
— Mas de que certeza você está falando?
— Da mesma certeza que o vosso pai explicou-lhe aos cinco anos de idade!
— Meu falecido pai?
— Exatamente, lá no circo.
— Não me recordo.
— Filha você se lembra quando seu pai lhe explicou como é possível um animal robusto como o elefante ficar preso em um pequenino toco de madeira?
Os olhos de Márcia marejaram com as recordações do pai saudoso e ela respondeu ao caboclo:
— Lembro.
— Então, o seu pai lhe explicou que o elefante desde pequenino tem uma corda amarrada em seu corpo que o prende a um fortíssimo tronco de árvore, não foi?
— Exatamente!
— E como o elefante tenta inúmeras vezes se libertar daquela corda e não consegue um dia ele acaba desistindo de tentar fazer isto justamente por ter a certeza de que isto seria impossível.
— Meu Deus, mas como o senhor pode saber disto?
— Filha não precisa chamar-me de senhor, continue a tratar-me de você.
— Acho impressionante como o senhor pode saber de uma coisa tão antiga, entretanto devo lhe dizer que se enganou quanto ao motivo que me trouxe até aqui esta noite.
— Verdade filha?
— Sim. Vim até aqui por que estou com uma tontura terrível.
— A tontura é conseqüência e a certeza é a causa dela!
— Como é?
Uma certeza que você possui está provocando esta tontura.
— É incrível como o senhor consegue ver tão bem o meu passado, mas não enxerga o momento presente!
— Fale mais filha!
— Na verdade o meu esposo vem cobrando certa coisa há seis anos e eu tenho um medo muito grande de “quebrar a cara” com a decisão que eu tomar. Eu tenho medo e não certeza!
— Você não está indecisa pelo medo, mas devido à certeza!
— Certeza?
— É! Certeza de que vai “quebrar a cara” se concordar com o seu marido.
— E qual é a diferença?
— Aquele que tem medo procura se precaver e se preparar para depois escolher um caminho. Após a escolha ele até teme pelo pior, mas não tem receios de viver um dia após o outro. Já aquele que tem a certeza de que vai “quebrar a cara” acabará “quebrando-a” por que será incapaz de enxergar o aprendizado da caminhada em sua decisão.
— Nisto você tem razão.
— Você entende que é a certeza que a vem impedindo de agir tal qual um pequenino tronco de madeira que consegue prender o mais potente elefante?
Neste instante, ao misturar imagens do presente com recordações do seu saudoso pai, Márcia chorou um copioso pranto.
O caboclo Rompe-mato deixou que a tempestade passasse e somente quando chegou a bonança emotiva no coração de Márcia foi que ele disse:
— Toda escolha envolve perdas e ganhos: o importante é saber o que se quer perder e o que se deseja ganhar com uma determinada escolha.
— Você sabe de qual escolha eu estou falando, não sabe?
— Você, até sentar na frente deste caboclo, tinha a certeza de que engravidar iria acabar com a paz em sua vida. Agora, depois da conversa que estamos tendo, esta certeza já não está tão clara em seu coração.
— É verdade!!! Mas...
— Fale filha!
— Qual é a relação desta certeza com a tontura que venho sentindo?
— Filha, esta gravidez foi programa no plano espiritual antes de seu reencarne e este caboclo só pode dizer que é uma oportunidade que você vem esperando há muitas encarnações.
— É mesmo?
— Sim. E o seu espírito sabendo que a hora é chegada vem lhe fazendo recordar do compromisso assumido há tanto tempo.
— E isto vem causando a tontura?
— Não. A sua teimosia em não querer assumir o compromisso vem atraindo compainhas espirituais indesejadas e grande desequilíbrio energético para você.
— Nossa, caboclo Rompe-mato, eu não entendo muito do que você está falando, mas sinto a força da verdade em suas palavras dentro do meu coração!
— Que bom filha, pois este caboclo só pode lhe dizer o que Tupã permite que seja dito.
— Eu entendo!
— Reflita no que caboclo lhe disse e use o seu livre-arbítrio com sabedoria! Peça a Deus que lhe dê entendimento para discernir verdadeiramente o que é ganhar e o que é perder de acordo com as decisões que você tomar, entende?
— Sim senhor, mas...
— Solta língua seu filha!
— Será que o sonho que tenho desde criança, mas que vem se repetindo intensamente nos últimos seis meses, está relacionado com este meu compromisso pré-reencarnatório?
— Filha este caboclo, no momento, só está autorizado a lhe dizer que assim que o seu filho nascer este sonho não mais se repetirá.
— Sim senhor, obrigada por tudo!
— Não agradeça a este caboclo, agradeça a Tupã.
Dois anos depois deste atendimento Márcia senta-se com o seu filho na frente do caboclo Rompe-mato e lhe diz:
— Senhor caboclo eu vim aqui hoje por dois motivos, sendo que o primeiro é lhe agradecer pela vida do meu filho, Henrique.
— O caboclo cruzou a testa da criança, olhou para Márcia e disse sorrindo:
— O seu curumim é lindo, mas caboclo lembra de ter pedido a você que só agradecesse a Tupã, não é verdade?
— É verdade!
— Mas diga filha Márcia: qual foi o outro motivo que trouxe você para conversar com este caboclo?
— É que eu tenho uma dúvida que para esclarecê-la eu teria que lhe contar aquele sonho que eu tinha desde criança e que, como o senhor mesmo me disse, parou de ocorrer desde o nascimento do Henrique.
— Pode falar filha!
— É que em meu sonho eu me via como esposa de um governante de um dos povos do antigo império babilônico. Eu via também que estava grávida, mas que o filho não era do meu esposo e sim de um escravo de nossa residência que tinha o nome de Josias.
Caboclo Rompe-mato recordava junto com Márcia quando lhe disse:
— Prossiga filha!
— Bom daí, de uma forma que eu não sei dizer como, o meu marido descobriu este fato e chicoteou.....
O caboclo Rompe-mato prosseguiu:
... chicoteou o escravo até mata-lo.
— Isto! Mas o que mais me impressiona foram as palavras ditas pelo escravo antes de morrer e que foram: ........
O caboclo Rompe-mato prosseguiu:
— “...............não se preocupe , pois um dia eu a auxiliarei a trazer a criança de volta a vida”.
— Isto! Mas, como o senhor sabe?
— Continue a contar o sonho filha!
— Naquele momento eu não entendi o porquê do escravo haver dito aquelas palavras a mim; somente dois dias depois do seu óbito foi que descobri: meu marido obrigou-me a escolher entre ter a criança e ser vendida como escrava ou abortar e continuar como a amante dele. Visando apenas o meu conforto eu tive a certeza de que era melhor abortar, mas o meu marido, mesmo assim, vendeu-me como escrava, do resto não me lembro.
— E qual é a sua dúvida filha?
— É que o meu bebê, o Henrique aqui no meu colo, eu sinto como se ele fosse aquele escravo reencarnado, eu estou certa?
— Isto é coisa que caboclo Rompe-mato não está autorizado a dizer só o seu próprio coração.
— Então está bem, agradeço a Deus por tudo, mas também não tem como deixar de agradecê-lo!
E, com um esboço de sorriso no canto dos lábios, o caboclo disse a ela:
— Agradeça somente a Tupã filha! Este caboclo é só um espírito ignorante!
Márcia sorriu ao recordar-se do quanto era pedante e preconceituosa com as práticas umbandistas há dois anos até o momento que conversou pela primeira vez com o caboclo Rompe-mato.
O caboclo despediu-se de Márcia e ela bateu ritualisticamente a cabeça no gongá em reverência e agradecimento a Deus.
A cambone do caboclo Rompe-mato olhou para ele de forma quase suplicante ao solicitar:
— Posso falar com o senhor?
— Pode falar filha!
— É que eu gostaria muito de agradecer o aprendizado que obtive com o senhor neste atendimento: muitas vezes deixamos de agir, de optar, de escolher nem tanto por medo, mas pela certeza de que o caminho que escolhermos nos levará ao arrependimento. Jamais devemos agir com o intuito de errar, mas se errarmos devemos entender que isto só nos aproxima do jeito correto de se fazer as coisas.
— Caboclo está vendo que filha aprendeu mesmo, hein?
— Muitas vezes deixamos de agir não por medo de errar, mas pela prepotência de querermos sempre ser infalíveis e pela triste certeza de que é melhor não agir do que errarmos.
— Caboclo fica feliz com seu aprendizado, mas agradeça somente a Tupã por ele.
— Sabe senhor caboclo foi incrível, quase inacreditável, como o senhor sabia descrever com minúcias o multissecular sonho da Márcia.
— Multissecular?
— É por que, como o senhor sabe, o império babilônico existiu há muitos séculos.
— Entenda, filha cambone, que você não deveria se espantar com este caboclo por isto!
— Ah eu sei que não deveria mesmo, pois eu sei como o senhor é poderoso e..........
— ...............Filha cambone?
— Sim senhor caboclo?
— Nunca mais repita que este caboclo é poderoso!!!
— Desculpe!
— Este caboclo sabe que você exerce há pouco tempo a tarefa de cambonar, mas nunca se esqueça que só Tupã é poderoso aliás, Todo Poderoso!
— Sim senhor!
— Não precisa ficar assustada, porque caboclo não está brigando, mas tentando esclarecer você.
— Sim senhor!
— Caboclo sabia do sonho da filha Márcia não porque é poderoso, a justificativa é muito, mas muito mais simples!
— E o senhor poderia contar qual é?
— É que este caboclo é contemporâneo da época em que ocorreu a história contada pela filha Márcia e é por isso que tem conhecimento do sonho narrado por ela, entendeu?
— Sim senhor!
— Então, por caridade, vá chamar a próxima assistência para este caboclo atender por que a prática da caridade não pode parar, não é filha?
— É sim senhor! Deixa eu ir lá chamar a assistência!
E enquanto a cambone se afastava do caboclo ele agradecia intimamente a Deus pela oportunidade de ter auxiliado na tarefa que há muito aguardava.
A cambone trazia uma senhora de aproximadamente sessenta e cinco anos de idade que seria o próximo atendimento da entidade e, enquanto isto acontecia, o Caboclo Rompe-mato passou a recordar dos tempos em que fora líder religioso de um povo que posteriormente foi feito escravo pelos caldeus. Na religião que ele professava eram ensinadas as verdades sobre a reencarnação, mas também a existência em um único Deus.
Lembrou-se de que era casado e que, quando o seu povo foi feito escravo, o governante maior dos caldeus tomou a sua mulher para amante, sem saber que ela estava grávida do esposo há poucas semanas.
A entidade se recordava destes momentos referentes a esta encarnação com um profundo sentimento de respeito e gratidão ao Divino Criador pelo fato de tanto haver evoluído por meio do sofrimento, e, enquanto a próxima pessoa a ser assistida pela entidade sorria para ele e já se sentava no toco o caboclo Rompe-mato terminava de agradecer a Deus por todo o crescimento espiritual que adquirira quando fora a encarnação do escravo caldeu que possuía, nesta referida época, o nome de Josias.